Entre humanos, para além das possibilidades e dilemas

Um filme que me chamou a atenção nos últimos dias foi aquele tipo de filme que você está querendo muito assistir, mas nem sabe que existe e, de repente, ele cai no seu colo, então você se delicia. Ventre (Womb) 2010/11 é um filme do diretor Benedek Fliegauf, com Eva Green e Matt Smith nos papéis principais. Benedek Fliegauf foi extremamente cuidadoso ao escrevê-lo, o roteiro exige e cumpre uma harmonia com a fotografia de Peter Szatmari digna de nado sincronizado, enfim, em termos de estética, o filme foi muito bem conduzido.
Entretanto, o debate que o filme propõe sobre engenharia genética, clonagem humana, parentesco e incesto me parece de igual relevância a sua estética e me manteve atento o suficiente para avaliar bem o filme. Por exemplo, o tempo tem um lugar especial no filme. Por meio da manipulação genética e diretor questiona o quanto “brincamos de deus” em relação à vida humana, no entanto, a reflexão sobre o tempo parece ressaltar esta nossa vocação para Chronos, ou melhor, para Zeus, o deus que venceu seu pai (Chronos) e se tornou senhor do tempo. A frase “vou lhe esperar o tempo que for necessário” é o outro lado da pera que apodrece, que morre, tendo ao fundo o relógio, a afirmação parece o contraponto do caramujo que sobreviveu por durante um ano. Caramujo que articula o sentido de mundo e espaço. Segundo Thomas: “A única coisa que ele (o caramujo) viu até hoje foi o gramado. Devo mostrar o mundo a ele”. Contudo, esta frase aparece quando aquilo que ele tem mais desejado naquele momento (sua recém-amiga Rebecca) está para conhecer o mundo e abandona-lo. É irônico perceber que a relação tempo X espaço guardam suas armadilhas, então fica a pergunta, o que é conhecer o mundo? Só por esta razão o filme já vale a pena.

O filme descreve a história da menina Rebecca que aos 12 anos de idade passa alguns dias na casa do avô e conhece Thomas, da mesma idade. Os dois se encontram, de verdade, um se encontra no outro. Parece uma pequena paixão, mas é algo que o tempo não teve o poder de matar. Os dias de Rebecca ao lado de Thomas se acabam e ela deve ir embora para Tóquio morar no 72º andar, mas não esquecer seu pequeno amor. Doze anos depois ela volta e o encontra, entretanto, ela o perde em seguida, um amor que o tempo e o espaço separaram por doze anos se perdeu pra sempre. Será? O filme trabalha com a realidade da engenharia genética. Clonagem animal é possível, clonagem humana a partir de uma autorização especial. Inevitavelmente o questionamento clássico sobre engenharia genética atravessa o filme, existe ética para clonagem humana? Contudo, o filme vai além, se pergunta o que pode ser considerado incesto, se pergunta se o incesto está no campo do domínio biológico ou social, se pergunta, fundamentalmente, sobre o que pode ser considerado parentesco? 
Rebecca resolve dar a luz a Thomas para tê-lo novamente ao seu lado. Se torna sua mãe social, assim como um filho adotivo, mas que nasceu do seu ventre, logo, ultrapassou a questão da mãe social, porque ele irá crescer achando que ela é sua mãe biológica. O tem, mas por quanto tempo? Ele será o mesmo Thomas? O que ela quer com Thomas? Ele é seu filho? Para Rebecca não, mas tudo isso não importa, esse debate já é lugar comum, o verdadeiro mérito do filme está em borrar as fronteiras do incesto real/artificial, ou não, não temos mais certeza do que pode ser incesto.
Em um quadro do filme, Rebecca, Thomas (clonado, já com 12 anos) e seu amiguinho Eric encontram Dima, a qual Rebecca inadvertidamente a convida para brincar com seu filho em sua casa, os meninos revelam a Rebecca que Dima é um clone, por que seu cheiro era peculiar. Mais tarde, em uma reunião de mães, as mesmas advertem Rebecca para não lidar com clones, fica a sutileza dos preconceitos dos que não são iguais. Na cena, uma mulher negra, branca, morena e oriental, neste momento o filme atesta a ideia de que o preconceito passa pelo indivíduo, na medida em que ele pode estar em uma situação confortável, logo ele não precisa ou não se sente obrigado a prestar contas para com as relações de poder, desde que o oprimido não seja ele.
Dima é fruto de um “incesto artificial”. “A mãe dela deu a luz a própria mãe”. Biologicamente isto é um incesto? Para gerar sua mãe, significa que foi inseminado um óvulo e o esperma dos seus avós. Esse é o contraponto de Rebecca, que quer Thomas, que não é seu filho, somente o concebeu, mas o quer como homem, para uma relação incestuosa. Diante da teoria clássica do incesto, as duas relações faltam um elemento, por isso é confuso.
Geneticamente, Dima é fruto de incesto, mas sexualmente não. Geneticamente, Thomas não é fruto de uma relação incestuosa, mas é concebido com a finalidade de ser o amante de Rebecca. De um lado, um fruto biológico do incesto sem relações sexuais, do outro, relações sexuais sem a concepção ou o elo biológico.
No entanto, o filme mostra que os tabus ainda são verdadeiros e ressurgem e se rearticulam a partir de novas emergências. O maior exemplo é a mãe de Thomas, que se professa ateia, mas se nega a autorizar a concepção da cópia genética. Certamente o filme nos indica que as cartas do significado de parentesco veem sendo embaralhadas na medida em que ciência e tecnologia avançam, de que tais concepções não guardam a um juízo intelectual e, consequentemente, imparcial a vida humana como defendem alguns geneticistas, mas esta questão move um juízo moral coletivo.


6 comentários:

  1. Filme confusoi, não? rs
    Gosto dessa temática Ciência X Isso ou Aquilo...
    Maioria das vezes fico ao lado da Ciência...Porém, o que parece neste filme o caso de incesto é muito mais abordado do que o 'melhoramento' genético? Ou não..?
    Eles misturam tudo???
    Só assistindo para ver,rs.
    De toda forma: adorei o texto!!!
    Seus textos são a cara e filosofia do nosso blog ( visão psicológica, antroposófica ...)bjs

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  2. Então, assista, vale a pena. Eu tbm sempre fico ao lado da ciencia qdo ela não é conservadora, mas neste caso, a questão não é nem ser contra ou a favor, mas como ela mexe com as relações humanas. Uma coisa q eu não disse no texto, mas q acho q fica patente é o fato do diretor biologizar excessivamente alguns comportamentos. Bom, acho q o filme tbm pode ter outro ponto de vista!

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  3. Adoro a Eva!
    Vou conferir...

    Abração Roni!

    Rodrigo Mendes
    http://cinemarodrigo.blogspot.com.br/

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  4. Olá Roni,
    Tudo bem?
    Antes de tudo parabéns pelo texto.
    Escreve muito bem.
    Sobre o filme até gostei. Concordo contigo sobre a conflitância entre os relacionamentos dos personagens. Creio que essa 'biologização' foi algo que o diretor usou como valvula de escape até para mostrar nosso lado mais animalesco e visceral.
    Em resumo achei o filme um pouco Calígula,rs.
    É confuso...Preciso rever,rs.

    Um beijo.
    Juli,

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  5. Então Juliane, fiquei pensando sobre seu comentário. Eu disse que havia uma 'biologização' das relações muito provavelmente por causa da minha queda pela psicanálise. A psicanálise tem uma outro modo de abordar estas relações que fascina. Não a aborda como menos animalesca, mas o que eu quis dizer é que parece que simplificou aquilo que conhecemos como incesto, que é puta complexo.
    Em relação ao Calígula, se for o filme. Calígula eu acho muito mais fodástico. Por tudo, pelo modo como é colocado cada personagem e a partir deste ponto, como o filme foi conduzido. Aquilo é bárbarie.
    Bjo Jú...e obrigado pelo comentário!

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"O cinema não tem fronteiras nem limites. É um fluxo constante de sonho." (Orson Welles)

 

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